Respondi também delicadamente: "Comigo não. Quando escrevo "estória" eu quero dizer "estória". Quando escrevo "história" eu quero dizer "história". Estória e história são tão diferentes quanto camelos e beija-flores..."
Escrevi um livro baseado na diferença entre "história" e
"estória". O revisor, obediente ao dicionário, corrigiu minhas "estórias" para
"história". Confiando no rigor do revisor, não li o texto corrigido. Aí, um
livro que era para falar de camelos e beija-flores, só falou de camelos.
Foram-se os beija-flores, engolidos pelo camelo...
Escoro-me no Guimarães Rosa. Ele começa o Tutaméia com
esta afirmação: "A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser
contra a história."
Qual é a diferença? É simples. Quando minha filha era
pequena eu lhe inventava estórias. Ela, ao final, me perguntava: "Papai, isso
aconteceu de verdade?" E eu ficava sem lhe poder responder porque a resposta
seria de difícil compreensão para ela. A resposta que lhe daria seria a
seguinte: "Essa estória não aconteceu nunca para que aconteça sempre..."
A história é o reino das coisas que aconteceram de
verdade, no tempo, e que estão definitivamente enterradas no passado. Mortas
para sempre. Ler a história é caminhar por um cemitério. Ali os mortos nos
contam suas lições. É importante ouvir os relatos dos mortos para aprender dos
seus equívocos e não repeti-los no futuro.
Mas as estórias não aconteceram nunca. São invenções,
mentiras. O mito de Narciso é uma invenção. O jovem que se apaixonou por sua
própria imagem nunca existiu. Aí, ao ler o mito que nunca existiu eu me vejo
hoje debruçado sobre a fonte que me reflete nos olhos dos outros. Toda estória é
um espelho. A estória da Bela Adormecida nunca aconteceu. Mas aí eu leio o poema
do Fernando Pessoa Eros e Psique. E quando eu o faço a estória sai do espaço
imaginário e entra dentro do meu corpo. E essa é a razão porque as estórias
pedem para serem repetidas. Nem sei quantas vezes já li o poema Eros e Psique. E
toda vez que o leio é como se fosse a primeira vez, como se eu já não o soubesse
de cor. A estória de Romeu e Julieta nunca aconteceu. Mas toda vez que é lida
ela ressuscita dos mortos e toma posse do corpo da pessoa que o lê.
Os relatos históricos são informações que levamos num embornal pendurado no ombro da memória. As estórias, ao contrário, nós as levamos dentro da nossa própria carne. Reinterpreto o evangelho: "E as estórias se fazem carne..." Não é outra a razão por que as crianças desejam que as estórias sejam sempre repetidas, do exato jeito como são conhecidas. As estórias fazem acontecer...
A história nos leva para o tempo do "nunca mais", tempo
da morte. As estórias nos levam para o tempo da ressurreição. Se elas sempre
começam como o "era uma vez, há muito tempo" é só para nos arrancar da
banalidade do presente e nos levar para o tempo mágico da alma.
Assim, por favor, revisora: quando eu escrever "estória"
não corrija para "história". Não quero confundir camelos e beija-flores...
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